o tempo do relógio finalmente não importa já está decidido é melhor esperar somente me entregar às músicas vozes passos pessoas à espera cansei de lutar contra ela me controlava para não olhar no relógio mas finalmente me entreguei ao platonismo bem-vindo e empolgante
voei longe longe longe sem noção de tempo ou de espaço até que me trouxeram para o mundo de novo
o cego me perguntava os nomes dos ônibus que passavam e eu os contava um por um ele dizendo este não este não serve e aquele também não até que um serviu e ele me deixou
deixou cega como ele onde eu estava sei lá não sabia mais que coisa estranha tudo ao contrário esquerda é direita e eu olhava atordoada à minha volta mil por hora onde estou quem sou eu que porra é essa que se passa socorro
moça me ajuda me ajuda moça moça onde estou o que é isso por que o mundo está contra mim me diz moça por favor me diz eu pra cá indo pra lá estou do avesso me desvira moça
o cego chutou minha bengala e eu caí de cara no chão tirou minha visão o safado abriu meus olhos pro mundo
até que me achei e ri
***
Samuel Beckett - "Como é"
2 comentários:
Eu fiquei muito tempo pensando o que seria "osseva", aí depois que eu descobri você colocou o "a" em maiúsculo!! Roubalheira isso.
texto muito bom e diferente do que você escreve. Li num fôlego só como manda a pontuação. Gostei.
É uma sensação de puta-que-pariu, tive mais ou menos a mesma sensação quando li 'Ensaio sobre a cegueira', daí vem a frase:
"A cegueira? Bem... a cegueira é alguma coisa assim que eu não admito, é incabível ser cego." (Maya Andrade)
A diferença é que eu não ri quando me achei, apesar que não achei, fraguementei-me. E acho que nunca se encontra os pedaços de novo, acha outros que colamos, remandamos e chamamos de eu.
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