Sejam bem-vindos ao outro lado do espelho, onde tudo pode acontecer (e acontece).

Wonderlando é um blog sobre textos diversos, descobrimentos e crescimento. A filosofia gira em torno do acaso, misturando fantasia e realidade de dois amigos que se conheceram também por acaso, Alice - que tem um país só seu -, e Yuri - chapeleiro e maluco nas horas vagas.

Leia, comente e volte sempre... Ou faça como a gente e não saia nunca mais.

26 de maio de 2010

Motivo

Você me despedaça, veste minha carcaça. Você, que tinha peso pra erguer, agora pisa em mim para se manter. Se eu me afastar, se você me largar, será que volto a sorrir?

Você está me matando de novo. Eu ainda sou uma lembrança? Sou quem controla os corvos. Você controla-se em vingança. Você costumava me iluminar, agora me joga na escuridão.

Estou te perdendo de novo, como se me digerisse por dentro. Eu acho tão difícil conviver com alguém, me permitir estar com alguém. Sou como o vento, que não sabe para onde vai, mas se mantém. Eu costumava te alegrar, agora eu sou quem te entristeço.

Sou patrono dessa realeza. Estou confuso em ódio fresco. Construí meu reino de tristezas. Quanto mais eu tento a cura, mais eu apodreço.

Não consigo perder ou parar com os gritos. Me confino a ser sempre um maldito. Me racha, me parte, me confunde. Maltrata estar vivo. O pior de tudo é não conseguir saber o por quê.

Eu queria um motivo.

21 de maio de 2010

Monstro Embaixo da Cama

Allan me acorda. Está frio. Quando finalmente resolvo atender a seus apelos, o vejo dormindo ao meu lado. O sono dos mais pesados. Allan não acordou aquela noite. Era cedo ou tarde, não sei dizer exatamente o quanto três horas da madrugada significam. Lendas urbanas dizem que é a hora do diabo. Eu sou o diabo, ao mesmo tempo em que não acredito.

Acordo Allan, que quando acorda, me vê dormindo ao seu lado. O mais profundo sonhar. Ele está cada vez mais comigo e se faz cada vez menos eu. Olha as horas, mas o que representam esses números? Lendas urbanas dizem que Allan não existe. Ele se acha deus.

O acompanho até a saída de mim, quando dei por mim, eu é quem havia saído. Trancado pra fora, nu, vestindo apenas uma forca ao redor do pescoço. Corro para as colinas, a inquisição me aguarda. Allan está lá a minha espera sem carta de alforria. Todos estão presentes. Me encapuzaram e preparam para o ritual. Meu pescoço quebra, Allan cai.

Eu acordo caindo. Allan dorme ao meu lado. Acorda assustado, caindo. Me procura. Acordo. Allan acorda. Eu sou o monstro embaixo da cama.

19 de maio de 2010

Sobre cabelos

Quando passaram a mão em meus cabelos, me perguntaram se você dedicava horas a afagá-los. Parei por segundos e viajei a uma cena, não aquela em que você me incentivava a cortar meu cabelo curto, cheio de personalidade, mas a outra cena. De tão infeliz que foi e de tão envergonhada que me sinto por isso ter acontecido, não vou dizer mais nada. Só que, quando essa digressão terminou, virei para os que me perguntaram com olhos chorosos e disse “não”.

***

Então, chega a meu conhecimento um tal devaneio. Não sonho, mas aquelas experiências sensoriais semioníricas. Seguem segundos de apreensão sobre o conteúdo. Será que quero saber, será que consigo aguentar, o que será? Como uma eterna curiosa, nunca direi não. Então, peço que me conte. E descubro que a dúvida paira dos dois lados: não sabe se eu devo saber também. Mas me conta e me alegra. Digo novamente sobre a timidez que tenho nestes contextos, algo que você ainda não vê. Dirá que não se importa, verá minha vulnerabilidade inicial.

Pensou que passava a mão no meu cabelo.

***

No banho, pedi que lavasse meu cabelo, só por preguiça e porque você é mais alto. Fechei meus olhos para que não me cegasse com a espuma. Embaixo do chuveiro, senti a água escorrendo e tapando meus ouvidos. Então me lembrei da minha mãe lavando meus cabelos quando eu era pequena e senti seus toques suaves, retirando o shampoo de todos os fios, até dos mais escondidos. Quando terminou e quis ser adulto, pedi um segundo para aproveitar minha infância, nunca havia me recordado disso.

E foi neste dia que cantei “All I Want” de Joni Mitchell e disse como ela falava sobre mim. Você significou uma parte da música que ainda não fazia sentido... agora só falta eu aprender a tricotar um sweater.

10 de maio de 2010

28.

Seus olhos são flores
que eu insisto em regar com tristeza.
Gostaria de chorar também suas belezas,
mas agora sou deserto,

e meu deserto chora areia.

Nos acolhemos sempre na tempestade
acampamos nos abismos mais perigosos,
desfrutando os medos em momentos
infantis e orgulhosos.

Foi um pouco depois da lua nova pendurar no céu,
te encontrei a mais bela
anunciando um novo romance,
me dando um velho papel.

Carreguei meu ódio cansado e pesado
ao redor de seu
corpo.
Não sei se já passava da meia-noite,
mas,
meio
bêbados,
meio
a meio
e meio
inteiros,
beijamos
um beijo
e meio.
Conforto.
Nós morremos um pouco
depois do amor nascer.
Um pouco
depois que havia me sentido vivo
após tanto morto.

Te ouvia gritar em meus gritos febris em descontrole,
em cada nota construída que eu viole...
Para minha flor de fim de tarde.

Já era tarde.

Suas mãos estão nos ramos,
sua voz está na brisa.
Novamente machucamos
e acabei manchando de sangue a branca camisa,
o sumo de um coração extinto.
As ações doloridas banalizadas em dramatizações batidas.
Desculpe,
é só o que eu sinto.
Em goles de vinho tinto
para fazer ir embora,
você me expulsa
ao mesmo tempo em que me quer na hora. O que se fazer de nós,
senão desatar?
Teimosos,
ainda tentamos buscar,
o que muito perdemos e julgamos banais.
Eu nunca te alcanço,
Quase nada satisfaz.
Quase tudo fica pra trás.
Sabemos que seremos para sempre,
e para sempre,
nunca mais.

O cabelo dela está no jardim,
entre os espinhos,
fazendo a morada de aranhas.
Ela me arranha e estranha.
Me aguarda
me guarda
para o fim.

Vinte e oito dias de amor.
Mais vinte e oito,
teu peito, meu acoito.
Dois infinitos de dor.

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Finalizando a série que começou com o I Have the Map of the Piano, com todo romance meloso e brega; passando pelo falso-
excitante e sem efeito Gole de Pernas; até aqui, no inerte e estúpido 28. =)

7 de maio de 2010

Ajuste os controles para o coração do Sol


A neblina que deveria nos impedir de ver faz enxergar muito mais. Fumaça contra a luz. Allan olha a luz e sente seu calor, encosta sua mão bem devagar até tapar parcialmente o brilho branco. Allan é o eclipse do Sol.

Toco uma canção na extensão de mim. A vibração deixa o corpo leve por dentro e mais pesado por fora, me domina a ponto de não conseguir parar ou controlar as notas. Allan dança hipnotizado a canção dos condenados.

Ele me dá um beijo e sua saliva é ácida. Desmaio e caio de uma vez no chão. Quando acordo estou num lugar de terra vermelha e céu laranja, uma terra gelatinosa, um laranja forte.

Derreto.

Calor.


Vejo uma janela pairando no ar. Ela dá pra outra janela, que mostra uma outra e dentro dela, uma sombra que sai correndo sem me dar a chance. Allan então aparece com duas bicicletas, ele nunca diz nada, eu sempre sei o que ele quer dizer. Vamos pedalando até as estrelas.

As nuvens do Sol são chamas ardentes que não nos queimam e se desfazem no ar. Um ramalhete de lótus voa com a gente, espalhando pétalas por todo lado. Allan pedala mais rápido e mais rápido e atrás da gente, nosso rastro arco-íris e as sombras tentando nos alcançar. As cores são sintilantes, quentes, tocáveis... Mais que qualquer outra coisa viva ou sólida.

Meu coração pulsa e o ambiente pulsa com ele. Me sinto vulnerável a esses fenômenos. Saímos da Grande Estrela. Allan então me diz: - Você sabe as coordenadas. Ajuste os controles para o coração do Sol!

Fomos e nunca mais voltamos.

Até voltarmos.Pulsando.

4 de maio de 2010

Cegueira

Ando descalço no escuro da madrugada. Sinto a água gelada no piso esfriando minha espinha, fazendo meus pelos levantarem. A cada passo, uma adaga faz uma nova cicatriz. O labirinto que eu fiz em mim não tem saída, mas mostra exatamente onde dói.

Vejo os Cavaleiros do Apocalipse se aproximando cada vez mais, eu me permito. Guardo tudo pra mim a
sete
chaves, a
sete
palmos, em
sete
pedaços estilhaçados do que restou.

Se eu pudesse escolher, pularia ou dormiria. Por incrível que pareça, nós não escolhemos nada. Nós, os suicidas, não temos escolha. A causa é explícita e a consequência varia de acordo com nossas vidas. A vida brinca com a gente o tempo inteiro. Irônico não?

Viver é um jogo que não permite vencedores.


Parece tão errado,
tudo o que eu penso o dia inteiro.
O tempo inteiro
eu acho que sou tão errado.

Então assisto aos meus acidentes imaginários, os acidentes de carro, as marcas que já não cabem mais mentiras, os medos que assumo aos poucos, meus desejos de violência reprimidos. Minha cara esmagada em algum ferro numa rodovia, meu corpo exprimido no asfalto.

Eu sou
o sangue
que ainda não escorreu.

Quanto mais me abro,
mais me sinto fechado.

Se eu fechar os olhos,
sei que
sentirei
minha falta.
Mas eles abertos não me enxergam mais.