Sejam bem-vindos ao outro lado do espelho, onde tudo pode acontecer (e acontece).

Wonderlando é um blog sobre textos diversos, descobrimentos e crescimento. A filosofia gira em torno do acaso, misturando fantasia e realidade de dois amigos que se conheceram também por acaso, Alice - que tem um país só seu -, e Yuri - chapeleiro e maluco nas horas vagas.

Leia, comente e volte sempre... Ou faça como a gente e não saia nunca mais.

23 de novembro de 2007

Glory Box

Era um dia de sol, quando aconteceu.


No ônibus:
"Bom-dia meus amigos, desculpem-me interromper o tão sagrado silêncio de vossa viagem. Aqui estou eu me pondo as caras, nu para a vergonha para dizer que fiz amor a tarde inteira com essa jovem garota que se esconde por debaixo dos meus braços. E só o que eu gostaria de dizer é que não devemos ter vergonha de um ato tão lindo e natural. Um ato tão cúmplice. Façam sexo sem-vergonha, respeitem a concretização do amor."


Era uma noite de lua, quando reli.









Portishead - Glory Box.mp3

22 de novembro de 2007

BZ




Eu não tenho espaço fora do que ocupo. E se não bato mais, não existo mais. O mundo segue cego enquanto eu tento enxergar numa tempestade de areia. Se eu desapareço, nada muda, só eu. Minha impressão do mundo é a de um cobertor cobrindo tudo. Calos, desenhos, umbigo, unhas, olhares, cabelos. Tudo. No começo, esquenta. Depois sufoca. Não tem espaço pra mais de um (o cobertor é de solteiro). Às vezes eu acho que estou feliz aqui. Às vezes eu acho que continuo fingindo.


Sonho dolorido. Um sonho que sinto que caio, que sangro, que dói. Se chego ao topo, eu quero pular. Se pulo, tenho medo. Se não, não tenho nada. "Há uma terceira alternativa", ele me diz com uma voz que não se sabe de onde vem. Tento fugir. Não acordo, mas fico preso dentro de um corpo adormecido. Fora do sonho. Aqui dentro. É um momento duradouro, agoniante. Me esperneio e grito, sem sucesso, pra tentar sair daqui. Da minha cabeça. Do escuro. Sem eu, eu não preciso existir¹.


E eu sonhava todo dia só para encontrá-lo. Era minha única companhia embaixo das cobertas. Eu podia estar pelado, ter chifres ou olhos pintados. À ele só interessava a voz. E a minha era ausente. Se antes eu tinha uma voz, agora mal faço barulho. Às vezes o topo da montanha é só aquilo. O fim ou o começo. O chão grita lá debaixo a minha espera. E às vezes o medo impede que cheguemos ao topo. Se eu pulo, eu morro. Se eu fico, eu morro. "Há uma terceira alternativa", ele dizia.


Meu mundo azul, tão lindo. Via de cima o mar prateado brilhando como diamante derretido. Se me molho, é só água. Verde e salgada. Não aqui. Eu não tenho espaço fora do que ocupo. Todos temos nossos mundos particulares. Nossas imaginações absurdas e inexplicáveis. Aquilo que não existe palavra que descreva o que é, o que sente. Por mais alienado e tosco que seja o sr-humano, todos temos nossos mundos particulares. Sem janelas, sem muros. Sem intrusos, sem mapa. Às vezes você acorda, às vezes você morre. E às vezes, quando cai, você voa.²

(Eu continuo caindo, sem decidir. Cada vez mais perto do fim.)









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¹. Frase original de Milla Pupo: "Sem eu, ele não precisa existir."
². Extraído da "graphic novel" (adoro esse nome) Sandman: Fábulas & Reflexões.


19 de novembro de 2007

Depois daqueles dias


"it might make you feel better" - sam brown





Pensei, escrevi, apaguei e desisti. Substanciar ou verbalizar não importa agora, porque nada traduz a voz, o silêncio, a companhia ou o abraço. Eu ainda caibo no abraço.

Agradeço a companhia imaginária, virtual e real.

15 de novembro de 2007

Eu quero descer

Domingo eu perdi a mais preciosa certeza da minha vida. Minha única certeza, para ser sincera. Na verdade, eu já sabia tudo aquilo que ouvi, mas não esperava que outros, aqueles outros em especial, o apontassem. Achei que eles viam esperança em mim, viam minha real realidade e não a que eu vejo. Porque a minha realidade é uma merda. E eles sempre me fizeram acreditar que ela era uma mentira... mas isso na minha frente. Foi numa conversa que eu não devia ter ouvido que descobri a verdade. A minha real realidade.

Eu perdi, perdi meu lugar. E agora? Os dias passaram, eu desviando olhares, adoecendo, sumindo, fingindo estar tudo normal. Mas chorava no ônibus, na rua. Lá ninguém me conhece mesmo. Ninguém vai atrapalhar minhas lágrimas, pois não sou dali. Não faço parte. Porém, parece que não faço parte de nenhum lugar mais. Aqui não me sinto mais em casa, lá sou só mais uma. As pessoas estão mudando, as coisas estão mudando e eu estou perdida.

Meus textos não são os mesmos, as palavras não se conectam.
Minhas conversas perderam o sentido, as pessoas não me entendem.
Eu não caibo mais no seu abraço.
Seus telefonemas não têm o significado que tinham.
Suas palavras não têm mais efeito.
Seus olhares me olham diferente.
Tudo se tornou estranho e eu estou alheia.
Perdi o encaixe do mundo.

E não queria ter falado as coisas com um estranho. Mas não tive outra opção. E eu não devia ter o direito de reclamar, já que foi a vida que construí pra mim, mantendo sempre todos afastados e só um lugar de apego. Pois é, Alice, bem feito... e agora?

***

“A vida não é um ônibus. Não dá pra gritar ‘pára, que eu quero descer’”.

Vida, pára! Eu quero descer.

14 de novembro de 2007

Shoots and Ladders

Não podemos ver o vento, mas vemos sua vontade se manifestar. 1h21 e um barulho de porta bate no silêncio. Minha postura muda como a de um cão atento. Abro a porta do meu quarto e lá vou eu. Não temo. Na verdade, tomado as vezes por um pensamento insano-sociopata, eu sempre desejei isso.

Desço as escadas e olho o escuro. Conheço a casa melhor que qualquer invasor, mas acendo as luzes. Até hoje não sei por quê acendi aquelas luzes. Mas acendi. Todas. Esquivando nas paredes, sorrateiro. Nada. Portas fechadas. Nada.

Algo gelado encosta em minha costela por trás. Me gela e falha a minha perna. Uma mão cala minha voz e outra diz para eu ficar calado. Se essa era a hora de ter medo, eu estava cumprindo o roteiro. Manda eu acordar minha família. "Acorda quem tá vivo pra não morrer dormindo". Impotente, obedeço. Minha coragem definhou ao olhá-los. Eu não tinha maturidade praquilo. E qual a idade que se atinge maturidade pruma coisa desse tipo? Hun. Me revoltei, me acalmei. Ainda não tinha problemas com o ar.

Não tem telefone. Não havia sequer uma esperança de ajuda. Parecíamos carne fresca à leões famintos. Seu rosto coberto gritava abafado: "A chave!" Calma. Eu vou buscar. Sempre vigiado. Ele era minha sombra, meu fetiche, meu pecado. Me negou até um copo de leite na minha própria casa. Meu desejo maior. Vingança. E lá fomos nós buscar a chave. Nem sei de que chave ele estava falando, mas levei-o para o meu quarto. Um lugar simples, aconchegante, de paredes vermelhas.

O vento era a trilha sonora. Procuro a chave-que-eu-não-sei coincidentemente aonde guardava uma faca. Coincidentemente. Seguro-a como seguraria um amor caindo de um penhasco. Nada vai me impedir. Suas balas não vão me impedir. Que isso custe a minha vida se for preciso. Eu não ligo. Eu não tinha problemas com o ar naquela época. Minha boca estava seca. Meus olhos molhados. Deveria ser ao contrário.

Desconfiado e confiante ele se aproxima. Respira-vira-foi. Ele olha e ri. Eu olho assustado e rio. Então é assim, uma facada? Tão rápida, e quantos tecidos pude atravessar e sentir... Não solto. Não dói. Morrer não dói. Permaneço ajoelhado, minha faca é minha cruz e não solto. Então é assim, uma coronhada? E meu nariz empurra o corpo desequilibrado pra longe. Sangue. A faca permanecia na minha mão. Sangue. Ele olha desacreditado e me xinga. Olha em meus olhos com perdão. É só o que consigo ver de seu rosto. Soa mais sincero. Ele aponta a arma em minha direção. Mas antes que ele complete o ato, eu já estava lá. O rei agora sou eu. Ele encosta na parede. Minha primeira carne, minha semelhança. Minha primeira morte. O doce gosto da vingança. Um, dois, nove. Clic, clic, clic. Clic. Ele só repetia até perecer: "Um lugar simples, aconchegante, de paredes vermelhas..."



















Queria ver seu rosto. Queria saciar ainda mais minha sede de vingança. O copo de leite que não tomei. Tirei a máscara. Era eu quem estava morto.
"Jovem acorda no meio da madrugada, acende todas as luzes de casa, acorda família e se mata."



12 de novembro de 2007

Cartas de Uma Linha Só

Nunca olho a caixa do correio. Raramente chega algo interessante destinadoa mim. Mas quando chega, é exatamente esse o momento. Raro. Faz tempo que você não me escreve com sua letra, não sela a atenção dedicada que eu jamais tive. Não tem problema, eu entendo. Mas sempre quando checo o correio, te procuro no meio das contas.

Minha caixa de entrada que era indiferente, agora é interessante. Meus e-mails são pedaços de histórias de outras pessoas que se desculpam por "não escreverem tão bem como eu". Besteira. Entre spams e stresses e conversas sem sentido, me contam coisas como se eu fosse o "querido diário". Gostaria ser. Pessoas diferentes me anexam arquivos .doc cheios de segredos e intimidades. Gostaria sempre de saber dessas pessoas que me mandam cartas e páginas de díario. Tantas vergonhas e medos superados ao clicar "enviar" com meu email endereçado. Por mais triste ou conflitante que sejam, eu sinto orgulho. Orgulho pela coragem e confiança que depositam a mim.

Espero que sejam mais frequentes e que não sintam vergonha em escrever. Encham minha caixa de entrada com suas histórias. Carta selada ou não, eu leio. Leio tudo cuidadosamente sem me preocupar com erros de português. Não sou pai nem professor.

Muito obrigado. Minha vida escrita em teclas. A vida de alguns que só conheço por aqui. É onde eu falo mais. Para quem não tenho que olhar nos olhos. Para quem não conheço. Só escrevo agora para agradecer àqueles que me escrevem despretenciosamente querendo apenas serem lidos ou ajudados. Muito obrigado.




















Instituto & DJ Dolores - Cartas De Uma Linha Só (M. Takara Remix).mp3

11 de novembro de 2007

Só meu

Depois de ouvir as palavras que não devia, as palavras que não eram para ela, fugiu. Saiu silenciosamente para que não soubessem que ali estava, desceu para o fundo do poço e lá ficou. Se desfez em choro para preencher o poço. Encher e encher até o topo. Até a boca. Tremia e começou seu corpo a formigar. Seu coração murchou e ficou pequenininho. Quase desapareceu. Não cabia mais ninguém, cabia a todos sufocados por sua carência, por suas necessidades. Gemia como uma menina. Buscava o ar profundamente dentro de si, mas ele não estava mais lá. Puxava fundo e mais fundo e nada vinha. Ela não sentia. Só podia sentir sua tontura, seu embaraço, sua desorientação. Parou de sentir seu braço esquerdo. Aos poucos, o resto do corpo. Tremia. Estava tudo tão quente. Estava tão sozinha. Apenas uma menina. Sufocou-se no seu choro apertado.

Tinha acabado de perder o que a mantinha ali. Ela sabia agora que quando a coragem chegasse, diria seu adeus. Mas até lá, ficaria no seu desespero.

9 de novembro de 2007

Fragile


Segredos que você não conta. Cerveja, cerveja. Cigarro, cigarro. Nos vimos tão brevemente, você disse tão pouco. Porque você é assim. "O verdadeiro truque na vida não é ser conhecido, mas sim ser um mistério", como dizia Bukowski, não é mesmo? Como só ele e você sabem. Como leio até onde você permite. Como te conheço em poucas frases.

Vivendo a "monotonia na cidade que nao pára...". Monotonina. Sempre fugindo de minhas aproximações. Sempre fugindo para seu interior. Para debaixo de uma ilusória proteção. Como se sempre chovesse em dia de verão. Faz moda e acorda sempre insone. E costumava me encontrar em noites perdidas. Em noites passadas. Dois perdidos. Dois fudidos que não são mais uma soma. Um e um.

Aonde você foi parar? Perdida em caminhos que não levam a nenhum lugar. Bebida que te engasga. Fumaça que te cega. Eu enxergo sua luz. Eu sei aonde você está. Porque eu também estou. Foge. Foge enquanto há tempo. Mas se não quiser, por favor, segure minha mão. Bem forte e não solta. Não solta porque eu te quero bem. Te quero Ben, minha amiga. Minha depressão. Eu falhei com você. É o que eu sinto, que falhei. Para não sentir vontade de chorar, te aperto em minha dor. Mas você nunca está aqui. E nunca está lá.













It's something I have to do
I was there, too
Before everything else
I was like you
I won't let you fall apart













Horse Latitudes

O tic vai. O tac volta e me avisa o tempo perdido. O silêncio estéril, como me irrita. Tic... e fico... tac... aqui... tic... parado... tac... esperando... tic... cavando... tac...

Uma mesa preta envernizada. Eu não quero estar aqui. Cadeiras vazias só destacam mais minha solidão. O céu é de um branco sujo tão tristonho... Ao caminhar vejo todos chorando. O céu branco-sujo agora sou eu. As pessoas passam automáticas, como trem. Ao passaram por mim, todas apontam e riem. Elas o fazem aonde não posso ver. Mas eu sei.

Minha trilha sonora não me permite ouvir nada além. Os dias passam e passam, exatamente como são. E se eu morro na sala dum hospital ou pulo de cima dele, que diferença faz? Não há efeitos colaterais.

Uma mesa preta envernizada. Seu espelho agora é líquido, é óleo.E me sujo. Mergulho e me sujo mais. Porque sou como o céu. Furioso, triste. Explosivo. A fechadura é pêndulo e a chave não entra. Uma, duas, três. Tentativas vagas e ásperas. Preciso abrir. É sempre a última chave, talvez não a última chance. Seus dentes passeiam o corpo e vão. Um quarto, um inteiro. Vai inteira e não acaba.

Me faço parte e parto. Entro pela fechadura e sou mastigado. Acordo do lado de dentro. O que aconteceu? O dentro é fora e não faço parte. Um cavalo me espera para montá-lo. Penso em quantos eu espero que montem em mim. Está tão longe. Acordo do lado de fora. O céu é de um branco sujo tão tristonho... Ao caminhar vejo todos chorando.

3 de novembro de 2007

[Prólogo dos Mortos: Os Dias Seguintes]

"Perto de você,
Dentro da tua história
Eu carrego as paisagens
E as miragens do além"


Depois que ela se mudou, poucas vezes a visitei. Hoje, como todo hoje, amanheceu chovendo. Ela é a anfitriã do dia e adora companhia. Seu novo lar está sempre limpo, organizado, florido. Como o antigo. Porém é menos espaçoso, mais introvertido.

Você nos recebe com aquele sorriso! O mesmo que nos deu ao partir. Tentei rir de volta, mas não consegui. Tentei não dar as costas. Não vai nos convidar para entrar? Melhor aproveitarmos o sol aqui fora mesmo. Está um dia bom para se ficar. Hoje é um dia bom pra ficar.

Que escuridão. Minha mãe acende velas na esperança de enxergar. Quando derrete, vira enfeite. O seu lar está cheio deles. Espero que todos entrem e dispercem e se despeçam de você para eu ficar em paz. Hoje, como todo hoje, amanheceu chovendo. E sozinho, no seu telhado eu faço chover. Me abraça forte e não me deixa. Quem me dera eu pudesse ficar. Me abraça forte e não me deixa.



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Angel¹ Faded From the Winter²

¹. Angel é uma música do Jimi Hendrix e é minha dedicatória e declaração escrita em versos.


Angel come down from heaven yesterday,
She stayed with me just long enough to rescue me
And she tell me a story yesterday,
About the Love between the Moon & the deep blue sea.
And when it was time for her to go,
She spread her wings high over me,
And she said, "I shall return tomorrow."
And I said, "Fly on my sweet Angel,
Fly on through the sky,
Fly on my sweet Angel,
Tomorrow I'll look for you by my side."

And sure enough this morning comes to me,
While silver wings silhouette against the glow of the child's sunrise.
And as the blue birds and the sparrows envy me,
She says, "I Love you little boy and today you shall fly."
She kissed me once,
And the feeling so good she made me cry.
And now we can fly together...

And I said, "Fly on my sweet Angel,
Fly on through the sky,
Fly on my sweet angel,
Together we shall always be high."


[essa versão é a acústica, bem mais legal]




². Faded From the Winter é uma música do Iron & Wine, banda que a Alice me apresentou. Essa música, em especial, é foda e passou a ter um sentido muito grande num dia como hoje, por exemplo.


daddy's ghost behind you
sleeping dog beside you
you're a poem of mystery
you're the prayer inside me

spoken words like moonlight
you're the voice that i like


needlework & seedlings
in the way you're walking
to me from the timbers
faded from the winter

2 de novembro de 2007

I Will Follow You Into the Dark


Ouvi os gritos desesperadores do lado de fora. Abri a janela e os pássaros eram anjos que desciam à superficie. Os ratos eram monstros e pecadores vindos do inferno. Só desce ao inferno quem é pesado demais. A maioria deles, arrependido. Os que não estavam, faziam daqui sua própria morada. O medo invadia as casas. Mas eles não estavam fazendo nada, a não ser viver. As pessoas temem a vida.

Alguns vivos declararam guerra aos mortos e usam todas as armas possíveis. Como matar o que já está morto? ...Eu seguia me perguntando. Não quis sair da minha casa. Tudo estava calmo demais. Não quero sair. Está escuro, está tarde. Eu quero sair, eu preciso. Esperei mais um pouco. Um copo de leite. Outro.

Caminhava entre os mortos-vivos na esperança de encontrá-la. Mas tinha tanta gente. Minha esperança esvairava. E quando meus passos pensavam em desistir, logo lembrava que antes mesmo dos mortos, eu encontrava rostos conhecidos nessa cidade gigante de gente maluca. Então meu peito batia mais vívido entre aqueles que já se foram. E só ouvia meus tambores. A chuva chegou castigando e lavando a alma daqueles que ainda a tinham. Só se ouvia os trovões.

Alguns ateavam fogo. E o fogo se espalhava nos restos de corpos e os restos dos corpos espalhavam o fogo entre carros e lojas e os vivos. Os vivos. Que queimem. Vi alguns reencontrarem entes queridos. Aquilo me faltou o ar. Calma, não agora. Quis chorar. Não agora. Vi alguns mortos conversarem sobre como estão felizes e como não querem voltar à essa dimensão. "Pr'uma cerveja, tudo bem. Mas só uma."

Achei que aqui fora, fosse morrer. Mas só dentro de mim. É só dentro de mim. Hoje ninguém morre. A morte passeia entre nós. Que garota incrível que me olha nos olhos me seduzindo quase que hipnoticamente. É fácil identificá-la. A maior ironia da vida é a Morte ser a que mais gosta de viver.

E o dia amanhece maravilhosamente belo. O cemitério está vazio. Logo hoje, está vazio. Sempre olho o cemitério a noite, quando ele está fechado como se ninguém pudesse morrer naquela hora. Ele nunca está vazio. Eu olho e sou olhado de volta. Mas especialmente hoje eu não tive essa sensação. Não havia por quê. Muitos recém-chegados iam direto ao lugar em que tinham deixado suas saudades e contas a pagar. Porém nem todos eram bem-recebidos. Quase podia ouvir baixinho as pessoas rezando pra passar. As velas acesas quase ofuscavam a luz do sol. Quase. Me ligam perguntando aonde estou. Estou bem. Calma, ainda estou bem.

Via pessoas antigas, abismadas com o mundo atual. Os parques eram os lugares preferidos das crianças que nunca puderam viver aquilo. Vou para meu lar, meu destino traçado. Não minha casa. Meu lar. E se ela não estiver lá? E SE ELA NÃO ESTIVER LÁ? Alguns "zumbis" riam da minha falta de ar. "Nós não temos esse problema". Não, claro que não. E seguia tremendo. Sempre a pé, carro era arriscado demais (pra mim). As ruas eram guerra e paz. Ódio e amor ao mesmo tempo. Era tragicamente belo.

Ando agora sem direção. Sem onde ir, sem te encontrar. Pedra e terra no lugar de seu colchão. Demônios correm para as últimas travessuras, para as últimas redenções. Avisavam que estava quase na hora. E o porteiro dos portais já estava com as chaves nas mãos. O dia se desfazia junto da simpatia dos que não pertencem a esse plano. Era hora de ir embora.

Um espelho. Um reflexo. Não pareceu ser eu. Eu estava sumindo. Eu estou tão perto. Posso sentir seu cheiro. O dia estava acabando e eu não a encontrei.

1 de novembro de 2007

Só para você sorrir... um urso ou um leão?

Um dia, em 1992, vi os tristes olhos de minha mãe entrando na sala. Com meu irmão no colo, em uma das pernas, e eu, na outra, ela nos contou que Clara, nossa cachorra, tinha morrido. Ela não ia voltar, esse tanto eu entendi, mesmo sendo um toco de gente. O que não pude agüentar eram os olhos chorosos da minha mãe. Abracei-a e disse “tudo bem, mãe. A gente arruma um leão ou um urso”. Foi tudo que minha maturidade pôde proferir. Se minha mãe sorriu ou se me achou tola, não sei.

Já em 1994, na primeira série, encontrei uma joaninha laranja na cortina da sala de aula e, não sei como, a trouxe para casa. Coloquei-a num vaso e fui chamar meu pai para me ajudar a cuidar dela. Passamos a tarde procurando livros sobre insetos para descobrir como alimentar a pequena. Não lembro seu nome, mas tenho certeza que a batizei. Por fim, achamos as folhas certas para alimentá-la, mas era tarde. “Pai, ela não tá se mexendo”, suas patinhas estavam duras. Ela tinha morrido. Meu investimento emocional tinha sido tanto, mesmo tendo sido por apenas algumas horas, que fiz um túmulo, com cruz e epitáfio. Enterrei-a no vaso e a contemplei com flores. Eu nem 7 anos tinha.

Em 1995, minha bisavó (que faria 115 anos hoje) faleceu. Desse fato, não lembro nada.

As lembranças, porém, das mortes dos meus inanimados amores estão sempre a me perseguir. Suas mortes pesam muito, muito mesmo, até hoje. Sinto a culpa dos assassinatos nas imagens congeladas do passado. Creio que nunca vou esquecer suas faces... mesmo se não tinham faces, mesmo sendo só uma pedra ou um barco de papel. Mas tenho o pequeno conforto da certeza de ter feito suas mortes mais brandas e menos sós o possível.

Agora, vivo o conflito de me importar mais com as despedidas dos objetos e animais... e nem ao menos lembrar a morte da minha bisavó. Eu gostava muito dela, de verdade. E talvez eu só recorde a morte do meu tio por ter sido há apenas 3 anos. Espero que não, mas sinto que pode ser verdade.

Hoje, deixo meus pesos e pesares em pensamento e coração.





[Por cada maldade de criança com a Clara...
Pelas minhas unhas cheias de terra...
Pelo colo da minha bisavó...
Pelos pensamentos despertos pelo meu tio...
E pela minha neurose].