
A densidade dos tons pastéis naquele calendário de anos passados representa meus dias. Dias mortos, desatualizados, sem referências, perdidos no cerne mais profundo da decadência. Às vezes quero que morra todos esses dias e números e cores e sons, aí então meu ouvido tapa e abafa o som, zunindo uma freqüência modular contínua. A audição é nosso único sentido involuntário.
No caderno, rabiscos irresponsáveis e memórias momentâneas. Escritos e desenhos da inconsciência. Minha mão tem o alcance limitado, meus dedos são fracos, quebráveis, e nem sempre é fiel à minha cabeça, que voa além do visível e da compreensão em busca de sentindo. Não fazendo sentido algum. Em busca de sentido. Não fazendo sentido algum. Em busca de sentido. Não fazendo sentido algum.
As teclas que batem na tela tiram a personalidade da minha letra, mas não das minhas palavras. Coço a cabeleira suja e junto aquela camada branca do couro da cabeça embaixo das unhas. Um pouco de sangue para não deixar o costume de sangrar. A sujeira de fora combina com a de dentro.
Tudo sempre me incomoda. A cama mais quentinha, o desenho mais engraçado, as lágrima das gargalhadas de ontem, a companhia mais amorosa. Minha carne. Nessas horas, tenho vontade de sumir ao meu lugar, que há tanto não visito. Para o meu interior. A contravenção é que estou sempre tentando sair de lá, daqui, quero dizer... Sei lá, enfim, estou sempre tentando fugir e dar um basta a isso tudo.
Sem sucesso, fico com a densidade das cores, os dias mortos, as pessoas zumbis, meus rabiscos, meus dedos quebráveis, minha cabeça fraca sem sentido, as teclas, a sujeira embaixo da unha, sangue, os incômodos, as brigas, as não-brigas, tudo que a gente diz e não diz, minha carne, a contravenção, lá, aqui, a isso tudo e a audição, que é nosso único sentido involuntário. A não significância do cotidiano até que é bastante pra quem é quase nada.
involuntário.algum.dentro.tudo.nada.ilustração:rafaelsica.