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15 de novembro de 2009

O que eu aprendi no Hospital do Rim e Hipertensão

Primeiras impressões são impactantes e, por isso, muitas vezes ficamos confinados a elas. Mas antes que isso, estas impressões são sempre nosso ponto de partida, seja para uma ação, para uma postura ou um ideal. Neste semestre, tive primeiras impressões relacionadas às milhares de facetas que este estágio possui. Uma relacionada à aparência do hospital, que impressiona muito: organizado, bonito, impecável. Não é por menos que é um dos mais importantes na área – se não o mais. Seguida desta impressão, veio a vista da sala que se tornara minha e de meus colegas por um semestre. Aparte das belíssimas obras dispostas em diversos cantos da empoeirada salinha, víamos uma antítese ao restante do hospital: como se fechada há muito, cheirava e estava suja, além de aparentar completa desorganização dos cativantes materiais. Vi trabalho e um grande potencial.

As semanas se seguiram e as primeiras impressões se mantinham. Eu já pensava que era tempo de desfazê-las (as negativas somente) e concretizá-las nos potenciais imaginados por esta nova equipe, que contava com uma novidade: uma profissional da saúde mental como uma ponte entre nós, ingênuos estagiários, e a instituição. Desta forma, pensamos que provavelmente iríamos conseguir colocar em prática o que aprendemos em toda a faculdade, especialmente nas aulas voltadas à área hospitalar. Pensamos estar mais próximos ao ideal de uma equipe multidisciplinar, que, através da cooperação entre as funções, conseguiria realizar o objetivo de todos estes profissionais: cuidar e promover saúde, nos mais diversos aspectos.

A teoria, porém, diferiu muito da prática. Deparamo-nos com uma grande carga de atravessamentos institucionais, de dificuldades pessoais e com a realidade de um hospital. Ao passearmos com nossos jalecos brancos entre médicos e enfermeiros pelos corredores e elevadores, tornamo-nos verdadeiros fantasmas. Era como se exalássemos inocência e inexperiência, algo percebido por todos e respondido com ignorância ou, quando nos fazíamos presentes com perguntas, com uma rápida réplica “quem é você?”. E ao me apresentar como estagiária de psicologia na Oficina de Artes, não imagino qual destas palavras desencadeava o tom do tratamento ríspido.

Esta é a realidade do hospital, a meu ver, um ambiente muito cruel. Cruel por estas categorizações de acordo com seu papel na instituição, mesmo quando não muito claro - o que te torna um profissional visto como desnecessário. Cruel mesmo quando muito claro, como enfermeiros, abarrotados de funções, responsáveis por coordenar o tratamento dos pacientes e os diálogos entre médicos e técnicos em enfermagem. Cruel também com os médicos, para os quais cabe a difícil tarefa de cuidar de vidas num nível extremamente complexo: ou vida, ou morte. Além de cruel com os usuários do serviço, pois são raros aqueles que vão ao hospital não estando em sofrimento.

Então, por que estávamos lá? Se aos funcionários parecíamos inúteis ou, até mesmo, inconvenientes, nós entendemos que as mazelas físicas não se dissociam das subjetivas, há sempre uma percepção do que se passa. Eis o porquê dos psicólogos: auxiliar na significação que o paciente atribui ao adoecimento. E uma Oficina de Artes parece um bom momento para propiciar este processo, pois recoloca o paciente numa posição ativa, atuando sobre o mundo, e não mais como um ser passivo dos tratamentos médicos. Oferecemos um ambiente diferente, com objetos e cores incomuns ao cotidiano branco, azul-pálido e bege ao qual eles estão acostumados.

Por um breve período de tempo, os pacientes conversam, conosco ou entre si, sobre a vida dentro e fora do hospital. Aqueles das enfermarias coletivas trocam reclamações e piadas mais facilmente que aqueles pacientes dos quartos menores, mais isolados do chamado “agito”. Alguns pedem para serem remanejados e deixar o que parece ser mais um isolamento do mundo. Os pacientes mais quietos demoram mais para se soltar e comumente respondem somente ao que lhes é perguntado. Penso que temem que sejamos mais uns médicos de jalecos, que passam lendo prontuários sem nem trocar um “bom dia” com o indivíduo deitado no leito. Mas aos poucos percebem nossa abordagem diferenciada, nossa atenção e interesse ao que eles têm a dizer. Interesse muito mais voltado à vida que têm e não à doença – disso, eles já estão cansados de ouvir e falar. Conversamos sobre a vida lá fora, os prazeres, as vontades, o que faziam e o que querem fazer. Inevitavelmente, fala-se da doença. Mas é claro! Pacientes crônicos, como estes, têm como parte da identidade ser pacientes renais. Sem nunca deixarem de ser pessoas com diversas possibilidades. Afinal, todos nós temos nossos contratempos na vida.

Com cada paciente, reformulávamos nossas abordagens. Uns queriam conversar mais, reclamar do hospital, reclamar que queriam ir embora, usando o humor para lidar com estes assuntos tão carregados de angústias e ansiedades. Os assuntos mais sérios surgiam em momentos mais íntimos, longe do grupo. Revelava-se a vida antes da doença, o descobrimento, os medos e as superações. Com outros, falávamos com foco alheio à doença, pois era isso que precisavam, ser vistos como muito mais que pacientes. E alguns conversavam como podiam, no silêncio, mas ainda presentes.

Fomos lidando, aos poucos, com as novidades do hospital, os novos aspectos que caracterizam o trabalho nesta instituição, os novos pacientes, os novos desconfortos e as alegrias. Reflito agora como sempre há novidades neste mundo que, na verdade, se repete e se mantém o mesmo. Sempre existirão pacientes com as mesmas queixas, sempre existirão obstáculos institucionais, sempre existirão diferenças profissionais. Mas aprendi que isto não é motivo para não se reinventar, procurar novas saídas e buscar um ideal no qual se acredita. Não se pergunta “para que uma Oficina de Artes?”, mas sim “por que não uma Oficina de Artes?”. Além do mais, ser cego não significa que não se possa mais jogar um jogo da memória.

2 comentários:

Yuri Kiddo disse...

hmm soou como um artigo em alguma revista de psicologia. Talvez o texto mais jornalístico que já passou por aqui.

=)

Lucas disse...

Escreves muito bem!

Eu creio
que
Há uma lógica totalmente inexplicável em todas essas complicações que acontecem..

"por que não uma Oficina de Artes?"

Torna essa lógica magnífica!