Sejam bem-vindos ao outro lado do espelho, onde tudo pode acontecer (e acontece).

Wonderlando é um blog sobre textos diversos, descobrimentos e crescimento. A filosofia gira em torno do acaso, misturando fantasia e realidade de dois amigos que se conheceram também por acaso, Alice - que tem um país só seu -, e Yuri - chapeleiro e maluco nas horas vagas.

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31 de dezembro de 2009

JUNKY'S CHRISTMAS

este texto não significa nada. ele significa tudo. este texto, eu demorei tanto pra escrever porque não consigo me recuperar. e acho que quero, dessa vez eu quero. meu natal, divirtam-se:


(close na TV e vai dando zoom out abrindo o plano pra sala. Depois disso deixa rolar a fita, não para hein!) A TV ligada no velho Burroughs com seu sotaque texano detestável. Bem baixinho, só para me acordar. Chia em meu ouvido me fazendo abrir os olhos e perceber que minha cama é feita de vômito. Cheiro o azedo do ar e gorfo. Sinto meus dentes mais sensíveis, minha boca seca, olho minhas mãos. Um pouco de sangue, um pouco de náusea... Que noite. Alguém arrancou a seringa do meu pé, sempre infecciona porque eu sempre esqueço, por isso nem me pico mais no braço. Saí dessa vida, saí dessas loucuras que eu sinto falta às vezes por ser tão autodestrutivo. Voltei porque fui obrigado, porque era isso ou a Morte. Eu queria os dois. (fecha na carta do ceifador no tarô e numa seringa cheia ou vazia, ainda não sei).

Eu rasgo essa pele na esperança de vazar pra fora dela. (produzir cenas de cortes e sangue).

Acordou (abra los ojos, cena de olhos se abrindo e borboletas abrindo as asas). Não dormimos juntos, mas estava ao meu lado, com o cabelo ensebado e os olhos manchados de maquiagem preta. Bom dia. Bom dia. Que dia é hoje, que horas são? Me beijou o rosto e abraçou minha carcaça pálida e ferida, encostando seu corpo quentinho em minhas dores. Agradeceu por estar viva. Agradeceu a mim, na verdade por eu fazê-la se sentir viva. Acabo sendo o salva-vidas. Mas Ela não corria riscos ali. Eu risco.

Foi tudo mentira. Agora me lembro. Acordei e não sabia quem eu era. A sensação de acordar, para mim, é como vir nadando ofegante lá do fundo do mar e poder respirar de novo, só que, na verdade, o anseio é para continuar no fundo. Assustado como sempre acordo, onde estou, que horas são? (relógios, barulho de relógios)Rodeado de pessoas desconhecidas, barulho, aquele cheiro horrível de... de... é familiar, mas desmaio antes de saber. (barulho de eletrocardiograma e coração. Fade out). (sem imagem)Acordei cheio de vômito seco, um odor azedo e uma agulha em meu braço. Outra vez? Não, dessa vez era soro. Não era mentira.

(Kiddo em preto e branco sentado numa pilha de corpos no meio de uma fábrica - trilha)Drogado, ninguém liga pra você, ninguém se importa com você, o melhor a fazer é morrer feito peixe fora d'água, se debatendo sem ar na calçada do hospital. Você, nós, somos o lixo social. O trabalhador é o lixo social, todos somos merda para o Estado. Então FODA-SE, prefiro morrer agonizando numa sarjeta qualquer do que suando a carcaça velha e magra trabalhando doze por sete para um patrão que não dá a mínima pra você, pra sustentar um monte de filho pra eles terem um futuro melhor. HA-HÁ, “um futuro melhor”. (Há tempos quero destruir o Estado).

Overdose. Quem diria, nunca havia tido uma, confesso que me assustei. Na hora eu sabia que ia acontecer, mas eu não conseguia parar, simplesmente.

Não há limite para minha dor.

Manhã cedo de natal. (close na roda da frente girando, depois corta prum plano aberto) Eu estava na moto, louco de tudo, sem capacete com a barba e os cabelos se enroscando com o ar, indo para lugar nenhum, vestido com uma camiseta suja e amarela com a cara do Bob Esponja e uma cueca samba-canção creme com folhas de maconha verde desenhada, descalço com o pé inflamado. A garota agradecida estava na garupa, em pé, apoiada no pézinho da garupa, com um vestido verde cor de grama até um pouco acima dos joelhos, descalça, com os cabelos ralos soltos ao vento e um sorriso de boca fechada muito sincero (roda a câmera em vários ângulos). Ela é muito sincera comigo. Tem a pele tão branca e é tão delicada que deve ser lindo vê-la voar (close de baixo pra cima, pés a cabeça). Eu queria voar. (voo)

Depois de quase cairmos e batermos em tudo a nossa frente, paramos num lugar alto, não muito longe, mas calmo, onde desse para ver as coisas e pensar nelas. Eu nem sabia onde estava, mas nunca sei. Por um breve momento a sobriedade bateu e me pegou desprevenido. Chorei por sentir as dores do meu coração de vidro quebrado espetando tudo dentro do peito. (Meio plano) Descambei o choro, comecei a me bater, chutei a moto. Eu queria por fogo em tudo e me jogar dentro da chama. Ela tentava me segurar, mas eu não conseguia parar. Eu não conseguia parar com as drogas, com a violência, com o sofrimento. Não conseguia parar de pensar. Ela chorou junto e terminamos sentados e abraçados, não conversamos. (fade out). Voltamos pra casa.

(câmera passeia pelo ambiente) Corpos caídos por todo lugar. Quando se está sóbrio aquilo tudo parece ruim. (planos curtos, cortes secos) Roupas jogadas e sujas, vômitos, mijos, sangues, bebidas, colheres, isqueiros, cigarros, vidro, o fedor disso tudo. O som ainda rolava, mas não sabia o que era, parecia Comin’ Back To Me, do Jefferson Airplane – acabou comigo e tive que correr pro banheiro pra ver o quanto mais agüentava chorar.

As pessoas ainda conversavam, eu ainda vivia. Esses grupos junkies mudam muito, isso é que é ruim, eu já não conhecia quase ninguém, e é sempre “o mesmo grupo”. Uns morrem, outros são internados, uns enlouquecem, outros fogem porque estão devendo para alguém. Todo mundo, no geral, está sempre devendo. Mas tem aqueles que não saem do lugar, que não morrem, que não melhoram, que não enlouquecem, que não se internam, que não fogem. Que não.

O mesmo Burroughs na TV. Na noite de véspera de natal (a noite anterior, repassa todo o filme em fastforward) festejamos nossas angústias e dores de mais um ano, a ceia foi preparada com muito carinho (plano de cima): uma mesa pequena, quadrada, azul, cheia de pó, pedra, M, maconha, sintéticos, lisérgicos e improvisados à volonté (cena em PB de um francês de calça preta, camisa listrada, boina, bigode fino e cigarro repetindo à volonté). Para junkies depressivos, nóias e acelerados, todos os gostos. Tinha pai de família, homem de terno, advogada, skatista, vagabundo, hippie, punk, gente normal. Ao ataque no sinal do Anfitrião - que sabe que tem o poder nas mãos e gosta disso - discursa: “Caros amigos, colegas, desconhecidos, é com muito prazer que proporciono este maravilhoso encontro natalino e (bláblábláblá). Sintam-se à vontade” - Mãos por toda a mesa. Conheço o Anfitrião há algum tempo, ele adora ser educado, mas é perceptível seu esforço para sê-lo.

O que eu gosto daqui é que todos têm apelido. Foi aqui que, anos atrás, ganhei o meu... Kiddo. E a agradecida ganhou o dela dessa vez: San, de sã, sóbria – é assim que chamamos quem só altera com álcool. Além do resto do pessoal, Anfitrião (auto-explicativo), Agulha (enfia até água na veia se deixar, mas ninguém deixa... faz mal), Doze (nariz de doze, cheira fundo), Taz (era tamanduá, mas era difícil, daí virou Tam e virou Taz – até porque ele fica tão louco quanto o Tazmania), e por aí vai. Legal né? Mais legal ainda foi depois da ceia. Pink Floyd, Velvet, Doors, Hendrix... Me senti em Woodstock. Mas aqui não era meu lugar, essa gente é lixo, é talento desperdiçado, é escrava do vício, não é isso que queria pra mim, por isso saí. Por isso lutei muito e saí. E neste infeliz natal, pela primeira vez na vida, fiquei tão perdido e fraco que não sabia o que fazer, com quem conversar, aonde ir. Vim parar aqui. Um amigo disse recentemente que só caminhamos em círculos (!); que o que fazemos hoje é atirar um bumerangue (cena do bumerangue voando em câmera lenta), e que quando ele volta, volta mais pesado, mais carregado direto na tua cabeça. Isso fez muito sentido pra mim,

[deletei]. (cena de uma mão teclando o delete).

(A cada "quero esquecer", ele se dá um tiro na cabeça - meio plano pra essa cena... hmm... acho que quero em PB também )Quero esquecer tudo que aconteceu, esquecer que existe esse lugar que me atrai como um ímã, esquecer a vida, este fim de ano de merda, esquecer que existe o amor... E carregar a minha dor até virar cinzas. (Cinzas voando).

Fin.


Junky Christmas. Era isso ou cear miojo em casa.

Um comentário:

Anônimo disse...

Eu não sei o que dizer. Tá muito bom, eu não sei me expressar agora.