Entrei naquele enlatado lotado. Um corpo feminino e esguio se prendeu ao meu. Olhei de canto de olho e, sem dar muita atenção, voltei às palavras frágeis de um livro.
As pessoas vêm e vão sem direção, até pombos parecem ter mais propósito que elas. Às vezes eu gostaria que fossem aves nobres, que tivessem mais propriedade. Solitárias e inquietas, as pessoas aguardam ansiosamente dentro do vagão. Olhando para o nada inquietante e vago - será que é por isso que se chama vagão, porque provoca essa sensação de grande vazio?... Desabilitando olhares, tornando-os devolutos e inóspitos, como os corações dos mais realistas... um vagão!
Aguardam o sinal para debandar e se esparramar pelo espaço, esbarrando em tudo. Eu sempre desvio das pessoas, não por educação, mas porque eu tenho nojo.
Lá estava ela, bem na minha frente, de cabelos louros metricamente bagunçados, de pele cheirosa e um decote maravilhoso. Suas mãos detalhadas cheias de anéis me apontavam expontaneamente sua boca carnuda levemente ressecada - Ahh, como eu queria molhá-la com a minha boca para vê-la de perto olhando assustada para mim. Suas unhas compridas diziam "não chegue perto, eu sou perigosa", mas sua real força era indefesa.
Seus olhos cerrados me identificavam, e pareceu que eu a conhecia como se toda manhã tivesse essa mesma visão. - Abra os olhos, querida, pensei alto, - Vamos, abra os olhos - ela nem se mexeu.
- Qualé, você quer que eu grite, aqui no meio dessas pessoas? - Ela gungunou, se ajeitou, mas nada. Meus gentis pedidos mentais fracassaram.
Alguns muitos olhares se voltaram a mim, nenhum que eu queria. E também, eu já estava perdido demais pra me perder em outro olhar. O que eu quero ela não me permitia.
Li desatento mais algumas páginas, mas sem tirar os olhos daquela. Estávamos quase no ponto final de nossa viagem, ela seria forçada a acordar e me enxergar. Abra os olhos, eu estou pronto.
Abriu os olhos mirando o chão. Não quis chamar atenção nem demonstrar meu estado alterado. Deixei-a reconhecer o lugar para depois me conhecer. Tateou o que suas mãos alcançavam, até que me tocou, e eu me deixei tocar. Suas pálpebras não se abriram, mas ela me enxergou como eu sou. Exatamente como eu sou, eu pude sentir. Ajudei-a a sair do vagão, ela não disse muita coisa a não ser que "podia se virar sozinha a partir dali, obrigada". E eu?, eu não podia me virar sozinho a partir dali.
Se perdeu sem esbarrar em ninguém, enquanto eu era engolido pela multidão sem nunca tê-la olhado nos olhos.
As pessoas se mostram fortes, mas não passam de coisas frágeis. Coisas frágeis colecionáveis. Ela foi mais uma para minha coleção.
*Esse conto eu fiz em outubro ou novembro do ano passado. Foi um recomeço. Logo quando eu parei de postar aqui no Wonder em setembro, eu também parei de escrever.
O conto tem um final alternativo, mas acabei perdendo em algum caderno no meio de um monte de outros textos. =P
Aí quando eu achar eu posto.
2 comentários:
Não sei quanto do seu conto aconteceu e quanto é ficção. Mas no caso de ter acontecido, poderia ser pior. Ela poderia estar de olhos fechados, dublando muda a música tocando nos fones de ouvido. Você poderia ter tentado ler os lábios na esperança de reconhecer uma das suas preferidas (músicas e/ou bocas). E você poderia ter que descer antes dela para algum compromisso sem tempero.
Achei que só eu tinha essas "paixões" de metrô! rs
Consigo até imaginar a cena de vc olhando pra ela, os traços dela... viagem!
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